Revisão do Marco Legal do Saneamento não incorpora os Direitos Humanos à Água e ao Esgotamento Sanitário

Publicado em 14 fev 2022

Escrito por ias_wordpress_admin

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As lutas pelo direito à água e ao esgotamento sanitário são muito antigas. Recontam a história de pessoas, do engajamento de comunidades inteiras por condições dignas de vida, pela saúde das famílias, pela moradia, pela permanência em seus territórios, em especial na formação das grandes cidades. O enfrentamento às violações de direitos humanos representa um processo incansável e em disputa pela diminuição das desigualdades sociais e pela promoção da saúde, especialmente nas populações mais vulneráveis.

Considerando esse histórico de lutas – e reconhecendo o enorme contingente de pessoas que, em pleno século XXI, ainda seguem apartados de direitos tão básicos -, a ONU deu um passo fundamental ao reconhecer o direito humano à água e ao esgotamento sanitário no ano de 2010, aprovado em Assembleia Geral, estando o Brasil entre os países signatários. Cinco anos depois, em 2015, a ONU aprovou resolução reconhecendo o direito humano ao esgotamento sanitário como um “direito distinto, porém integrado” ao acesso à água. A partir de então se passou a falar em “Direitos Humanos à Água e ao Saneamento” (no plural). Esse processo está relatado em uma série de entrevistas com os três relatores especiais que vigoraram desde esse momento da declaração dos DHAES, disponíveis no site Dia Mundial do Banheiro.

Aqui é necessário ressaltar que o termo que aparece na ONU é “sanitation”, que quer dizer “esgotamento sanitário” e não saneamento. Já aqui no Brasil, o termo “saneamento” é bem mais amplo, foi definido pela Lei 11.445/2007 e compreende serviços de abastecimento de água, esgotamento sanitário, resíduos sólidos e drenagem.

Desde esse reconhecimento da ONU, os países devem garantir, progressivamente, esse direito, incluindo a obrigatoriedade a seu reconhecimento nos ordenamentos jurídicos nacionais. O reconhecimento dos DHAES traz implicações legais aos Estados que são os responsáveis por garantir acesso à água e ao esgotamento sanitário indistintamente para toda a população. “O referencial teórico do DHAES é uma importante ferramenta para regulamentar o uso da água em diversos países, contribuindo de maneira significativa para a elaboração e implementação de políticas públicas”1.

Princípios e critérios normativos dos DHAES

Os Direitos Humanos à Água potável e ao Saneamento são derivados do direito ao adequado padrão de vida, bem como ao direito à vida e à dignidade humana (Resolução ONU 15/9)2. Tem origem no Tratado Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e possuem princípios e critérios normativos específicos.

Segundo o “Manual sobre os Direitos Humanos à Água Potável e ao Saneamento para Profissionais”, os princípios fundamentais dos direitos humanos aplicados ao contexto da água e do saneamento, comuns aos dois serviços, são: igualdade e não-discriminação, responsabilização, participação e acesso à informação e transparência3.

Igualdade e não discriminação – Água e saneamento devem ser fornecidos sem qualquer discriminação. Prestadores de serviços devem garantir que os seus sistemas não excluam indivíduos e grupos, marginalizados ou em risco de marginalização, independentemente dos níveis de rendimento.

Responsabilização – Diz respeito aos Estados, que são obrigados a respeitar, proteger e cumprir os direitos à água para consumo humano e saneamento, para as pessoas sob a sua governação, e devem ser responsabilizados pelo cumprimento destas obrigações. A responsabilização inclui monitorização, mecanismos de reclamação, resolução de conflitos e transparência. Em relação aos prestadores de serviços, estes devem assegurar que os seus sistemas de monitorização e os níveis de acessibilidade econômica estejam em conformidade com as metas do governo e instruções das autoridades públicas.

Participação – Todas as pessoas, especialmente aquelas que estão geralmente sub-representadas, incluindo mulheres, minorias étnicas e raciais e grupos marginalizados, devem ter a oportunidade de participar de forma significativa na tomada de decisões, no que se refere ao acesso à água segura e saneamento. As autoridades públicas e os prestadores de serviços têm a responsabilidade de garantir que os utilizadores e quem é afetado pelas decisões tomadas sobre o tipo de serviço sejam informados e possam participar, de uma forma significativa, neste processo de tomada de decisão. 

Acesso à informação/transparência – Essencial para que haja uma participação significativa, o acesso à informação diz respeito a dados sobre a qualidade da água, preço e tarifas, possibilidade de subsídios para indivíduos e grupos específicos da população, sistemas de pagamento, além de informações mais amplas como orçamentos de programas regionais e nacionais existentes e previstos etc. A transparência também está relacionada ao processo de monitoramento do orçamento, das despesas, da definição das áreas ou grupos populacionais que devem ser priorizados na prestação de serviços3.

O acesso à água potável e ao esgotamento sanitário como direitos humanos abrangem ainda as dimensões da disponibilidade, acessibilidade física, aceitabilidade, acessibilidade econômica e qualidade4, detalhados abaixo enquanto critérios normativos:

Critérios Normativos dos DHAES:

DisponibilidadeÁgua: o recurso deve estar disponível para uso doméstico, em edifícios públicos e no local de trabalho, cumprindo os requisitos de limpeza e segurança. Saneamento: existência de instalações sanitárias seguras disponíveis para todos, em todos os lugares: em casa, no trabalho e em locais públicos.
Segurança e QualidadeÁgua: água para consumo humano deve ser livre de agentes patogênicos e níveis tóxicos de produtos químicos.Saneamento: instalações sanitárias devem abordar várias medidas de proteção para limitar os riscos associados à sua utilização.
AceitabilidadeÁgua: Aspecto, sabor e odor local e culturalmente aceitáveis, embora os parâmetros sejam altamente subjetivos, por isso não é possível definir metas de aceitabilidade globais claras e objetivas.Saneamento: instalações e infraestruturas sanitárias bem geridas para evitar impactos adversos sobre o bem-estar dos indivíduos e das comunidades e no meio ambiente.
Acessibilidade físicaÁgua: o recurso deve estar acessível, inclusive para crianças, idosos e deficientes, a uma distância entre a residência ou o local de trabalho e o ponto de abastecimento de água que permita o acesso de todos.Saneamento: garantir o acesso a instalações sanitárias a todos: homens, mulheres, crianças e pessoas com deficiência, incluindo medidas que devem incluir proteção contra o assédio e a agressão, especialmente à noite, e com atenção especial e acesso prioritário para a questão de gênero.
Acessibilidade econômicaÁgua e Saneamento: garantir que as instalações e serviços de água, esgotamento sanitário e higiene sejam financeiramente acessíveis a todos. Para ser economicamente acessível, o custo dos serviços de água e saneamento devem ser proporcionais ao rendimento disponível dos agregados familiares.

Realização progressiva e inclusiva: a necessidade de um ambiente favorável

Complementarmente aos princípios e critérios normativos dos Direitos Humanos, deve-se observar a relação entre dois conceitos fundamentais, apontados por Léo Heller no seu décimo segundo relatório da ONU: realização vertical, que diz respeito à melhora progressiva do nível do serviço (como, por exemplo, passar de um chafariz para uma torneira em casa), e realização horizontal, que diz respeito a avançar progressivamente no atendimento com foco nos que ainda estão à margem desses serviços, ou seja, ampliar a população atendida5. Assembleia Geral das Nações Unidas, 2020.). 

Para que essas duas estratégias avancem, é necessário que os Estados sejam capazes de fazer planejamentos adequados, preferencialmente fundados no marco de Direitos Humanos e busquem um patamar que equilibre a qualidade do serviço e a ampliação de atendimento dos locais menos assistidos e com concentração de populações mais vulneráveis em termos econômicos, sociais e de saúde.

Refletindo e desejando um contexto de realização progressiva – que, insistimos em reforçar, exige uma redução das desigualdades e não só a expansão dos serviços já existentes -, há a necessidade de um “ambiente favorável” (HELLER, 2020) que inclui: a existência de instituições, regulamentos e processos, a mobilização de recursos financeiros e a possibilidade de judicialização dentro do sistema jurídico do país, que deveriam ser obrigações mínimas do Estado, segundo o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Decreto 591/1992).  

Destacamos ainda a importância do princípio da responsabilização nesse ambiente favorável, ou seja, os Estados deveriam garantir que todos os atores envolvidos na questão sejam obrigados a cumprir os Direitos Humanos, com a existência de mecanismos de responsabilização, marcos jurídicos e regulatórios que tenham esses direitos reconhecidos explicitamente. Isso vale inclusive para a iniciativa privada, que também deveria ter sua atuação voltada a considerar os Direitos Humanos quando atua no setor.

Oportunidade perdida

Considerando essas informações, ressaltamos que foi perdida uma grande oportunidade de incorporar esses direitos humanos quando da aprovação do chamado novo Marco Legal do Saneamento, a lei federal 14.026/2020. A oportunidade perdida de incluir de forma completa entre seus princípios e objetivos da lei que o acesso à água limpa e segura e ao saneamento básico são direitos fundamentais, nos deixa para trás no avanço desses direitos – uma vez que o avanço no conjunto de políticas, o planejamento e a prestação dos serviços públicos deveriam ser balizados por esses direitos. 

No entanto, destacamos a importância de uma proposta de emenda constitucional (PEC) 6/21 que torna o acesso à água potável um direito fundamental. Apresentada em  2018, a PEC  foi aprovada pelo Senado Federal em março de 2021 e agora tramita na Câmara dos Deputados. Seu texto inclui, no artigo 5º, inciso LXXIX, da Constituição Federal: “é garantido a todos o acesso à água potável em quantidade adequada para possibilitar meios de vida, bem-estar e desenvolvimento socioeconômico.”

O IAS acredita na importância de se pressionar por essa aprovação e a contínua busca pela incorporação do saneamento, mais especificamente o esgotamento sanitário, também como um direito fundamental na Constituição Brasileira, que segue como um desafio. Avançar na luta pelos Direitos Humanos incluindo seus princípios e critérios explicitamente nas legislações, de forma que possam ser cobrados, é uma luta tão necessária quanto as lutas travadas pelas comunidades em seus territórios.

Além disso, a pandemia da Covid-19 escancarou a urgência da garantia do direito ao saneamento, especialmente o acesso à água potável (GTSC A2030, 2021). As violações e privações e o consequente empobrecimento das populações é um fator de preocupação ainda maior diante da associação com a crise climática e a escassez hídrica. No contexto atual, portanto, o acesso adequado e universal à água, ao saneamento e às instalações de higiene é ainda mais urgente.

 

Referências:

¹ NEVES-SILVA, Priscila e HELLER, Léo. Artigo “O direito humano à água e ao esgotamento sanitário como instrumento para promoção da saúde de populações vulneráveis”. Centro de Pesquisas René-Rachou, Fiocruz, 2016 (p. 1862).

² NEVES, Estela. Quem cuida da água. Governança da água doce: a moldura jurídico-institucional nacional, 2016. Aliança pela Água, 2016.

³ BOS, Robert e outros coautores. Manual sobre os Direitos Humanos à Água Potável e Saneamento para Profissionais. Iwa Publishing, 2017

4 ALBUQUERQUE, Catarina de. Manual Prático para a Realização dos Direitos Humanos à Água e ao Saneamento pela Relatora Especial da ONU, Catarina Albuquerque – Introdução. Human Rights to Water and Sanitation – Un Special Rappourter, 2014

5 HELLER, Leo. Realização progressiva dos direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário (Décimo segundo relatório – A/HRC/45/10). Assembleia Geral das Nações Unidas, 2020.