Decretos para o saneamento básico: o que mudou e o que está em disputa

Além dos pontos em debate nas casas legislativas, os recentes decretos para o saneamento alteram outros pontos e estabelecem novos prazos relevantes. Entenda como vem sendo regulamentado o Marco Legal de Saneamento e como impacta os rumos à universalização

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O saneamento voltou a ganhar destaque na grande imprensa. Os motivos não são o vergonhoso atraso brasileiro na garantia desse serviço público essencial, que é reconhecido como um direito humano; ou pela universalização do seu acesso ter relação direta com sustentabilidade, redução de pobreza e combate a desigualdades. O saneamento virou alvo de disputa de força política entre Executivo e Legislativo e da queda de braços entre o incentivo à ampliação da participação privada no setor ou o apoio às empresas estaduais de saneamento básico.

O governo Lula publicou, em 5 de abril, dois decretos que alteram e revogam os decretos anteriores que regulamentaram o Marco Legal do Saneamento (Lei 14.026/2020 que modificou a Lei 11.445/2007). No dia 03 de maio a Câmara Federal aprovou em votação urgente um decreto legislativo que suspende pontos considerados divergentes dos decretos publicados pelo Executivo. A decisão ainda precisa passar pelo Senado para tornar-se definitiva (o que poderá se dar nos próximos dias).

A Câmara escolheu o saneamento como matéria em que poderia discordar da linha do governo e demonstrar sua força na disputa por influência política. A falta de um debate público na casa legislativa sobre o conteúdo das alterações, a urgência e a rapidez da votação expressam um recado claro para o novo governo. Mas o avanço do saneamento estava realmente no centro da questão? 

Os decretos para o saneamento regulamentam outros pontos além daqueles em disputa. Neste artigo, trazemos os principais pontos que os decretos do Executivo alteram, ilustrado por meio de exemplos e dados, um breve histórico que retoma um importante veto feito pelo então presidente Bolsonaro na Lei que revisou o Marco Legal, aprovada no Congresso em 2020.

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Condicionantes para acesso a recursos

Para incentivar a aplicação de suas diretrizes e estratégias principais, o Marco Legal do Saneamento definiu condicionantes para o acesso a recursos federais por parte de municípios, estados, prestadores e reguladores. Parte desses condicionantes foram detalhados por decretos da gestão anterior e revistos e atualizados pelos recentes decretos do Executivo:

O Decreto 11.466/2023 dispõe sobre a metodologia para comprovação da capacidade econômico-financeira dos prestadores de serviços públicos de abastecimento de água potável ou de esgotamento sanitário, considerados os contratos em vigor, com vistas a viabilizar o cumprimento das metas de universalização. E revoga o Decreto nº 10.710, de 2021.

O Decreto 11.467/2023 trata da prestação regionalizada dos serviços públicos de saneamento básico, do apoio técnico e da alocação de recursos públicos federais e dos financiamentos com recursos da União ou geridos ou operados por órgãos ou entidades da União (como BNDES e Caixa Econômica Federal). E revoga os Decretos  nº 10.588/2020  e nº 11.030/2022.

O Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 98/2023 aprovado na Câmara e que seguirá para o Senado retira alguns artigos dos decretos do Executivo.

Decretos servem para trazer detalhamentos para os dispositivos e condicionantes dados por leis, ou seja, têm a função de esclarecer e dar instruções, mas não podem alterar a lei. Prazos contidos em lei só podem ser alterados por uma nova lei. No entanto, o que se vê no caso do Marco Legal de Saneamento é que alguns prazos da lei não foram cumpridos à risca e novos prazos (com funções distintas, mas complementares às diretrizes do Marco) foram fixados por decretos e foram prorrogados a cada vencimento do prazo. Outro ponto de destaque são as interpretações do texto legal feitas por decretos. Se, por um lado, elas facilitam a aplicação da lei por gestores, por outro podem acirrar debates jurídicos e até levar à judicialização. 

Um decreto pode ser derrubado pelo Congresso, com a edição de um decreto legislativo, como foi o que aconteceu na última quinta-feira, dia 4. A Constituição Federal define (art. 49, inciso V) entre as competências do Congresso sustar os atos normativos do Poder Executivo “que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa”.

Acordos ignorados, mas não esquecidos

Os decretos para o saneamento publicados pelo governo retomam uma polêmica antiga. Logo após sua aprovação no Congresso, a Lei 14.026/2020 sofreu vetos presidenciais de artigos relevantes, em especial o art.16, que permitia a renovação de contratos de programa – modelo de prestação de serviços feitas por Companhias Estaduais de Saneamento Básico (CESBs) – diretamente com municípios. A assinatura de novos contratos de programa ficou proibida pela revisão do Marco Legal e foi determinado que toda nova concessão para a prestação dos serviços deveria ser precedida de um processo de licitação prévio. No entanto, o contrato de programa é a modalidade predominante no país e o art. 16 havia sido negociado no Senado com o objetivo de garantir mais tempo e segurança para o processo de transição. O veto ao artigo, porém, apontou para a direção contrária, de ruptura, e gerou incertezas para a gestão de grandes CESBs. 

Outro ponto importante da Lei 14.026/2020 foi a exigência de que prestadores de serviços públicos ou privados comprovem capacidade econômico-financeira para a realização dos investimentos necessários ao alcance das metas de universalização estabelecidas pelo Marco: 99% da população atendida com água potável e 90% da população atendida com coleta e tratamento de esgotos até 2033.

A metodologia para a comprovação foi elaborada de forma pouco participativa em 2021 e editada no Decreto 10.710 daquele ano. Só poderiam participar da análise os contratos vigentes “regulares”, ou seja, assinados e com prazos válidos, o que não era a realidade de muitas das prestações feitas por companhias estaduais em municípios, com contratos de programa vencidos.

O processo de comprovação da capacidade econômico-financeira dos prestadores se encerrou em março de 2022. Pelo resultado, 1.117 contratos de prestações ficaram  em situação irregular. Seis Companhias Estaduais tiveram a totalidade de seus contratos tornados irregulares, dentre elas, Águas e Esgotos do Piauí S/A (Agespisa)  e a Companhia de Saneamento Ambiental do Maranhão (Caema). Outras não incluíram na comprovação a prestação que realizam em grandes municípios, como é o caso de Salvador, pela Empresa Baiana de Águas e Saneamento (Embasa), e João Pessoa, pela Companhia de Água e Esgotos da Paraíba (Cagepa), pois os contratos estavam “precários” (com validade vencida e não renovados). Dos municípios com contratos considerados irregulares, 73,5% possuem menos de 20 mil habitantes. De acordo com a diretriz anterior, para a regularização desses contratos seriam necessários novos processos de concessão regionais ou municipais.

Outra justificativa para a revisão dos decretos é que, cada vez que um prazo do Marco Legal do Saneamento (definido por lei ou decreto) se aproxima do fim, é preciso verificar quem não poderá receber recursos federais por não cumprir as exigências. No caso da diretriz de regionalização, caso os decretos anteriores fossem mantidos, estariam de fora: 

  •  1.632 municípios dos estados que não aprovaram leis de regionalização do saneamento: Acre, Goiás, Minas Gerais, Pará, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e também os próprios governos desses seis estados;
  • 502 municípios que não aderiram à regionalização proposta por seus estados (quando o estado adotou um arranjo em que a adesão é voluntária), como ocorreu em São Paulo, Rio Grande do Sul e Rondônia.

(Fonte: Levantamento IAS – Observatório do Marco Legal, 2023)

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Decretos do Executivo: principais mudanças

Capacidade econômico-financeira

A revisão da metodologia e prazos para a comprovação da capacidade econômico-financeira das prestadoras, em especial das CESBs, permite a adequação de prestações de serviços nos municípios que estão com contratos precários, além de oferecer uma nova chance para CESBs que não participaram do processo anterior por não cumprirem os requisitos mínimos.

Destaques sobre a metodologia para a comprovação da capacidade econômico-financeira:

  • As CESBs poderão incluir na documentação a ser entregue os contratos vencidos ou sem delegação (quando há a prestação sem contrato). A metodologia anterior não permitia;
  • Os contratos de programa, após a comprovação da capacidade econômico-financeira, poderão ser estendidos em até 10 anos, com vias a compensar os investimentos necessários para atender as metas de 2033;
  • Aquelas CESBs que não tinham condições de reunir a documentação necessária para a comprovação ganharão, nas palavras do presidente Lula,  “um voto de confiança”. A nova metodologia permitirá que essas companhias estaduais façam um plano de metas para atingir os referenciais mínimos dispostos no prazo máximo de cinco anos. Deverão apresentar metas intermediárias, ano a ano, que serão verificadas anualmente por uma entidade reguladora.

Novos prazos:

  • 31/12/2023 – Data limite para que as companhias enviem a documentação para comprovação da capacidade econômico-financeira;
  • 31/03/2024 – Prazo para que as Agências Reguladoras Infranacionais enviem parecer; 
  • 31/12/2025 – Prazo para a regularização dos contratos que não foram aprovados.

Regionalização

Um dos eixos estruturantes do Marco Legal é o incentivo às novas regionalizações para o saneamento básico. A junção de municípios e estados para a gestão compartilhada da política de saneamento, e assim ganhar escala na possibilidade de prestação conjunta dos serviços públicos. Os decretos do Executivo trazem novos prazos para a conclusão das regionalizações por estados e municípios e inclui novos critérios para serem considerados nas regionalizações.

Novos prazos:

  • 31/12/2024 para publicação dos planos de saneamento básico (regionais e/ou municipais); 
  • 31/12/2025 – para a conclusão das regionalizações.

Destaques:

  • O novo decreto inclui o entendimento que, no caso de uma microrregião de saneamento, região metropolitana ou aglomeração urbana, uma prestação dos serviços feita pela CESBs pode ser considerada uma prestação direta regional, sem necessidade de licitação ou mesmo contrato, uma vez que o estado faz parte da estrutura de governança regional para a gestão do saneamento;
  • Foi acrescido no texto do decreto que, quando a prestação regionalizada envolver populações rurais, originárias e tradicionais, as instâncias de governança regionais abarcarão outras instâncias de governanças criadas para a gestão do saneamento nessas áreas – com direito a voto;
  • O município, quando tiver prestação direta e/ou já tiver atingido as metas de 2033, terá autonomia para decidir participar ou não, junto à região de saneamento da qual já faz parte, em integrar uma prestação de serviços regionalizada.

PPPs em Contratos de prestação dos serviços

Retira-se, com base numa interpretação da Lei, a restrição de 25% para a estruturação de PPPs, que passará a ser exclusiva para subdelegações do contrato.

Desincentivo às outorgas milionárias pagas nas concessões dos serviços

Para novas licitações, o decreto define que será dada prioridade ao uso de recursos ou financiamentos da União a projetos que adotem como critério de seleção a modicidade tarifária e a antecipação da universalização do serviço público de saneamento. É uma tentativa de desincentivar os leilões que têm como critério a maior outorga pela concessão dos serviços de água e esgoto, como as que ocorreram no Rio de Janeiro e em Alagoas. A crítica às outorgas milionárias é que o dinheiro entra no caixa livre dos governos estaduais e municipais, sem a necessidade de serem reinvestidos em saneamento. No final, quem paga a outorga são os usuários, através das tarifas de água e esgoto. 

Regulação e Normas de Referência

A Lei 14.026/2020 deu à Agência Nacional de Águas (ANA) a função de elaborar Normas de Referência para auxiliar na uniformização da regulação pelas agências de saneamento básico. Os novos decretos para o saneamento do Executivo determinam um prazo para os municípios delegarem a função de regulação a uma agência infranacional e trazem condicionantes para a elaboração de Normas de Referência pela ANA:

  • O decreto definiu prazo de 31/12/2025 para as regiões de saneamento e/ou municípios delegarem a regulação dos serviços de prestação de saneamento básico para uma entidade reguladora. Antes, não havia uma data estabelecida;
  • Definiu que as normas de referência devem observar as diretrizes da política federal de saneamento básico, inclusive aquelas estabelecidas pelo Ministério das Cidades; considerar as diferenças socioeconômicas regionais e limitar-se ao mínimo necessário para atingimento da finalidade de padronização.

Para se ter ideia do cenário da regulação, de acordo com a Associação Brasileira de Agências Reguladoras (ABAR), em 2020, apenas 53% dos municípios brasileiros eram regulados por agências. Não foram identificadas agências reguladoras para 2.584 municípios.

 O que o decreto do Legislativo altera

O Projeto de Decreto Legislativo (PDL), aprovado na Câmara e que seguirá para o Senado, retira alguns artigos dos decretos do Executivo que permitem a regularização de prestações feitas por Companhias Estaduais com contratos classificados como “irregulares” (precários); a possibilidade de prestação direta por CESBs em regiões metropolitanas, aglomerações urbanas ou microrregiões; e os artigos que estenderam o prazo para comprovação da capacidade econômico-financeira de CESBs que não participaram da primeira análise feita em 2022.

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