Caminhos para a universalização do esgotamento sanitário: sistemas centralizados e descentralizados

imagem de divulgação do debate sobre os Caminhos para a universalização do esgotamento sanitário

Alcance da meta de universalizar o saneamento básico depende da adoção de soluções apropriadas para cada realidade local, apontam especialistas 

Sistemas centralizados, descentralizados, semicentralizados de saneamento básico. E, dentro de cada categoria, há uma série de soluções que podem ser adotadas para garantir que toda a população tenha o direito humano a esgotamento sanitário garantido. Contudo, é fundamental conhecer as especificidades de cada território, estabelecer estudos e métricas que apontem quais os melhores arranjos para atender ao contexto local. Para debater o tema, durante a programação do Dia Mundial do Banheiro 2021 foi realizada a mesa “Caminhos para a universalização do esgotamento sanitário: sistemas centralizados e descentralizados”.

Assista à mesa:

A mesa contou com a participação de Bernardo Castro e Tomaz Kipnis, ambos integrantes do Saneamento Inclusivo; Thiago Prestes, da Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan); Deise Coelho, da Sustainable Sanitation Alliance (SuSanA); e Marcondes Ribeiro, do Instituto Sistema Integrado de Saneamento Rural (Sisar).

Leia os principais trechos da mesa:

“A gente vai discutir com algumas pessoas muito especiais um recorte super importante para avançarmos efetivamente com o saneamento no Brasil de forma homogênea para todo mundo, todos os contextos, todas as regiões, que está relacionado a ter um repertório diversificado de atendimento, com sistemas centralizados onde isso faz sentido, sistemas semicentralizados para onde esse arranjo fizer sentido e sistemas descentralizados onde essa for a rota de solução mais adequada diante das condições locais”, detalhou o mediador, Tomaz Kipnis.

Na sequência, o consultor do Saneamento Inclusivo, Bernardo Castro, apresentou um estudo inédito desenvolvido pelo instituto com o objetivo de verificar a viabilidade financeira de arranjos centralizados e descentralizados em localidades específicas com diferentes portes e contextos de ocupação. “Há algum tempo a gente, no Saneamento Inclusivo, busca entender a dinâmica dos sistemas descentralizados no Brasil. Para isso a gente tem tentado achar uma forma de mostrar em que contextos seria interessante o uso desses sistemas”, explicou Bernardo. 

Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2017, incluídos no estudo, mostram o grande uso de sistemas de fossas sépticas e de fossas rudimentares. “Fica bastante claro o quão dependente o Brasil é de soluções individuais para os esgotos e essa dependência ocorre em contextos de ocupação distintos. O mais normal, o mais falado são as áreas rurais. No entanto, a gente observa também muito dentro das ocupações urbanas precárias, nas áreas urbanas de baixa densidade, os pequenos municípios, que são maioria no nosso país, e também bastante comum em áreas urbanas de crescimento acelerado, que são as margens, as periferias dos grandes centros urbanos, onde o crescimento não é acompanhado pelo desenvolvimento das estruturas de saneamento básico, nesse caso, das redes públicas de coleta e transporte de esgoto”. 

De acordo com a publicação Atlas Esgoto, de 2019, da Agência Nacional das Águas e Saneamento Básico (ANA), nos pequenos municípios, de até 50 mil habitantes, há uma predominância de soluções individuais, de sistemas descentralizados ou de não atendimento. Já em municípios de médio a grande porte, há uma predominância das redes de coleta de esgoto, com e sem tratamento. “Uma forma bastante comum de avaliação da literatura é tentar achar um ponto crítico ou onde há uma maior viabilidade do sistema centralizado a partir do momento em que se ganha uma economia de escala, ou seja, quanto mais pessoas se atende numa pequena área compactada, menor o custo que se tem para o atendimento dessas pessoas”, explicou Bernardo.

Castro ressaltou que os sistemas descentralizados e semicentralizados têm maior capacidade de adaptabilidade a condições, interesses locais e mudanças territoriais ao longo do tempo do que os sistemas centralizados. Além disso, possuem amplo repertório de tecnologia. “Isso é bastante importante quando a gente pensa num país com as dimensões e contextos diversos como o Brasil. Uma solução super aplicável na região Sul pode não ser adequada para a região Norte. Uma região interiorana vai demandar uma solução diferente de uma região costeira. Todo esse repertório de soluções é facilmente intercambiado dentro dos sistemas descentralizados ou semicentralizados”, explicou.

Bernardo detalhou a metodologia do estudo e apresentou as especificidades de cada localidade estudada. Santo Antônio do Prata, no município de Igarapé-Açu, no Pará; Vila de Santo André, em Santa Cruz de Cabrália, na Bahia; e Nazaré Paulista, em São Paulo. “Fizemos o levantamento da rede e consideramos a possibilidade de implementação de uma estação elevatória ou o desmembramento do sistema para sair do centralizado para um semicentralizado sempre que era menos custoso a gente implementar uma nova estação de tratamento de esgoto do que implementar uma estação elevatória, que tem um custo bastante elevado”, informou.

Conclusões 

O especialista do Saneamento Inclusivo destacou que o estudo demonstra que não faz sentido comparar os custos diretos entre uma sede municipal e um bairro na periferia de um município. No entanto, ao analisar algumas proporções, como o custo por habitante ou o volume de água consumido pela população ao longo de 20 anos, é possível chegar a uma métrica que permite comparar os diferentes sistemas. Outras duas métricas, de ocupação do território, foram ponderadas: a densidade populacional e o adensamento de domicílios por quilômetro de via levantada na localidade.  

“Os sistemas centralizados têm um custo individual e por metro cúbico por volume de água servida bastante elevado quando se considera pequenas densidades de ocupação do território, ao passo que super se viabiliza à medida que essa densidade aumenta. E é inverso nos sistemas descentralizados, onde a gente tem um custo bastante menor nas regiões de pequena densidade de ocupação do território e esse custo aumenta expressivamente à medida que a gente tem um adensamento da ocupação”, detalhou Bernardo. “Ficamos numa densidade de aproximadamente 25 habitantes por hectare como ponto crítico neste estudo e, em relação a densidade de domicílios, chegamos ao valor de 65 domicílios por quilômetro de via como ponto crítico entre os custos de sistema centralizado e descentralizado. As duas métricas são bastante interessantes de serem utilizadas”, concluiu.

Especificidades locais

Para Deise Coelho, representante da Rede SuSanA Latinoamérica no Brasil e diretora da empresa Condominium, o tema da mesa e do estudo são muito importantes, sobretudo no contexto atual, em que o Brasil se comprometeu com o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 6, de “garantir disponibilidade e manejo sustentável da água e saneamento para todos até 2030”, e com a meta de universalizar o acesso a saneamento básico até 2033, constante no novo Marco Legal do Saneamento.

Coelho destaca que a população tem que ser incluída na discussão, assim como é fundamental adotar uma solução sustentável e que leve em conta os custos de implementação com garantia de qualidade. “Não é porque é para favela ou para comunidade isolada que você vai trabalhar com qualidade inferior. Muito pelo contrário, a qualidade tem que ser até melhor”.

Em sua avaliação, as áreas urbanas devem ser inseridas no sistema formal de esgotamento. “Para as áreas rurais, começa desde a sede dos municípios, que é mais no sentido de uma conformação urbana, e passa depois para distritos e localidades ou até comunidades isoladas, ribeirinhas como as diversas que a gente tem na região da Amazônia. E aí sim, a gente precisa pensar numa forma semicentralizada ou descentralizada completamente”. É fundamental, segundo Deise, considerar a sustentabilidade do sistema. “Para manutenção e operação existe um custo do serviço e nas regiões rurais a renda é muito baixa ou quase nenhuma, mas os sistemas têm um custo para operar”, ressaltou.

Marcondes Ribeiro, diretor-presidente do Instituto Sisar, concordou com as considerações de Deise. “Nós temos muitos questionamentos: o Brasil não tem dinheiro, o investimento em saneamento ninguém vê e os valores são muito altos. Porém, existe muito investimento sendo executado. O que está acontecendo no Brasil há muitos anos é que os investimentos estão sucateados”.

O Sisar atende mais de 850 mil pessoas no estado do Ceará. São mais de 200 mil ligações de água. No entanto, de acordo com Marcondes, o atendimento de esgotamento sanitário é muito pequeno. “Temos um trabalho na região norte, são em torno de 20 sistemas, que foram construídos há mais de 25 anos e não tinham a visão de gestão. Temos um projeto piloto há mais de três anos funcionando. É um sistema de rede com uma boa estabilização em um distrito de um município sem esgotamento sanitário. A gente chama esse modelo de misto, que além de ter rede de esgoto, também tem unidades só com fossas sépticas e sumidouros, não seria incluído dentro do sistema”.

Para o Sisar, não existe uma solução única. “A gente aposta muito na questão individualizada porque é mais simplificada, não precisa ser operada pelo morador local. A proposta do Sisar no Ceará é que a gente faça o esgotamento, o acompanhamento e o trabalho de capacitação ambiental. O que buscamos no estado é o investimento do caminhão à vácuo. Imagine que o Sisar é uma minicompanhia e a gente busca fazer esse trabalho também na zona rural para que não fique só na questão da água, porque temos muitos poços e sabemos que a contaminação está aí. Não podemos deixar que o meio ambiente seja prejudicado”, detalhou Marcondes.

Concessionária investe em solução individual

Thiago Prestes é engenheiro químico da Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan) e participa de um programa de atendimento de esgoto por meio de arranjos descentralizados. Ele aponta que a legislação obriga a colocação de uma solução individual de esgotamento onde não há rede coletora. Em 2014, a Corsan assinou um Termo de Cooperação com o Ministério Público Estadual e formou-se um grupo de trabalho com a Agência Reguladora do estado, a Federação dos Municípios, entre outras entidades. Concluiu-se que caberia à operadora do serviço de água fazer a operação do sistema de esgoto na solução individual. 

“O saneamento é um serviço público e regulado, para a Corsan chegar na residência e limpar uma fossa teria que haver regulação. A principal ação inicial seria a Corsan, como concessionária, propor para a Agência Reguladora como funcionaria esse serviço para que isso virasse uma resolução normativa. Nós fizemos um piloto para experimentar bem e ver como seria e propusemos para a Agência. Fazemos uma vistoria no imóvel para verificar se a solução individual está em conformidade com o que o Plano Municipal determina, com o que as normas determinam, geramos cadastro e depois é feita a limpeza”, detalhou.

“É importante dizer que, como concessionária, nós estamos lá para limpar o lodo do tanque séptico. O usuário frequente limpa a unidade de afastamento, como sumidouro ou quando tem solução mais rústica, a fossa rústica. O usuário não vê valor em limpar o lodo, aquele tanque séptico tomado de lodo é uma unidade que não funciona mais, é quase uma caixa de passagem. Acaba chamando o limpa fossa que vai lá sugar líquido e não lodo. Já um tanque séptico limpo regularmente tem maior chances de funcionar”, enfatizou.

Mesmo em 30 anos, não havia recurso necessário para a implantação de rede centralizada em todas as localidades que necessitavam de cobertura adequada. “Esse número que vocês chegaram nesse trabalho é muito importante para nós defendermos a aplicabilidade da solução individual, especialmente ao longo do tempo, para verificar se ela vai ser uma solução definitiva ou se vai ser uma solução transitória”, destacou sobre o estudo do Saneamento Inclusivo. “Essa solução individual, mesmo que transitória, tem que ser operada hoje em dia. A Lei 14.026 (novo Marco Legal do Saneamento) determina que não pode fazer contratos de concessões, de programas, só de água, tem que ser de água e esgoto juntos. Mesmo que transitório, entendemos que tem que fazer a gestão do lodo fecal, que é limpar o lodo de um a cinco anos, como determina a legislação”, informou. 

Perspectivas para 2033

Ao final, o mediador Tomaz perguntou aos participantes quais suas perspectivas para os próximos anos em relação ao setor de saneamento, tendo em vista a meta do novo Marco Legal do setor de universalizar o acesso até 2033.

Para Deise, está acontecendo um movimento “muito interessante”, com o esforço de entidades e profissionais para a expansão do acesso ao saneamento. “A gente tem que trazer mais profissionais, principalmente jovens, inseri-los, capacitá-los, fazer com que eles amem esse tema, porque impacta consideravelmente a vida das pessoas. A gente sabe que saneamento não é só saúde, é qualidade de vida como um todo, inclusive impacta na autoestima, na renda, educação, em tudo”, destacou.

Na avaliação da especialista, é preciso buscar soluções simples e inovadoras que respondam às necessidades locais e da população. “Independente de localização, de renda, a condição básica estabelecida para uma intervenção tem que garantir o acesso. É muito importante esse tipo de debate, é muito importante apresentar soluções porque o diagnóstico do déficit a gente já tem, a gente já sabe. Quando eu penso em diagnóstico é aprofundar a realidade para que a gente possa trazer estratégias para vencer o desafio, seja para implantação, seja especialmente também na operação e manutenção, que é a sustentabilidade do sistema”.

Thiago apontou que não vislumbra o alcance da meta sem contabilizar o tipo de arranjo com soluções individuais, como o realizado pela Corsan. “Três aspectos necessários no arranjo atual, que é prever que a solução esteja indicada no Plano de Saneamento Regional ou Municipal, que faz essa avaliação técnica de onde seria viável adotar soluções individuais, em que horizonte de tempo e que tipo de solução limitadas às questões hidrogeológicas e adensamentos urbanos atuais e futuros. A concessionária tem que atestar que aquela solução do imóvel está em conformidade com o que o plano atesta, fazer a vistoria, gerar um cadastro, verificar se o lodo está sendo removido na frequência adequada e, obviamente, associado a uma destinação adequada desse lodo. Atendendo a esse tripé, esse usuário conta para o famoso índice que é chegar em 90% dos brasileiros atendidos em 2033”, detalhou.

De acordo com Marcondes, a experiência da Corsan deveria ser levada a outros estados como política pública. Além disso, a abertura para empresas do setor privado estimula as companhias a melhorarem a prestação de serviços. “A Cagece (Companhia de Água e Esgoto do Ceará) já traçou um plano, há mais de um ano. Só de debêntures ela já buscou mais de 700 milhões para investir em rede de esgoto, em rede de água para chegar a essa universalização”, exemplificou. “A perspectiva é boa e eu tenho esperanças boas, só um pouquinho pessimista. Não sei se a gente vai chegar tão longe, mas a gente vai avançar bastante, tenho certeza”. 

A mesa Caminhos para a universalização do esgotamento sanitário: sistemas centralizados e descentralizados foi realizada durante a programação do Dia Mundial do Banheiro 2021. Para conferir os detalhes sobre todos os debates acesse o site diamundialdobanheiro.org.br.