Decretos sobre saneamento: um olhar detalhado das revisões

Novas publicações organizam conceitos, ampliam prazos e revisam metodologias de comprovação de capacidade econômico-financeira. Governo federal recuou de propostas feitas em abril, mas disputas seguem nas esferas regionais

Publicado em 29 set 2023

Escrito por Equipe IAS

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Marcello Casal Jr./Agência Brasil
Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Novas publicações organizam conceitos, ampliam prazos e revisam metodologias de comprovação de capacidade econômico-financeira. Governo federal recuou de propostas feitas em abril, mas disputas seguem nas esferas regionais

  • A nova redação dos decretos tem como justificativa garantir a possibilidade de que empresas, municípios e estados que não cumpriram prazos e requisitos anteriores obtenham financiamento com recursos da União
  • O decreto 11.598/2023 trata da metodologia para comprovação da capacidade econômico-financeira dos prestadores de serviços públicos de abastecimento de água potável ou de esgotamento sanitário. Já o decreto 11.599/2023  trata da estruturação da prestação regionalizada; a adesão dos titulares à regionalização; e a constituição da entidade de governança interfederativa.
  • Com a pacificação entre executivo e legislativo em relação a esse tema, as disputas de interpretações da lei saem do campo dos decretos e se transferem para os Estados e em processos de judicialização. 

Revisados pelo governo federal depois de enfrentar resistência no Congresso,  novos decretos federais de saneamento – que regulamentam o Marco Legal de 2020 -, publicados em julho de 2023, encerram parcialmente uma polêmica que vem se arrastando desde o início do governo Lula em torno de mudanças no setor. Foi a negociação possível entre setores influentes na prestação dos serviços de água e esgoto e o jogo de forças entre executivo e Congresso. 

De um lado, atores do setor argumentam que os trechos retirados buscavam ajustar entendimentos da lei que não estavam claros. Na outra ponta, havia aqueles que consideravam que o conteúdo excedia os limites de um decreto e que tais entendimentos deveriam estar em leis. Pondera-se, no entanto, que a simples retirada dos conteúdos mais polêmicos não restringe o debate e disputas por diferentes interpretações podem acontecer nos estados, caso a caso.

Os novos decretos revogam dois decretos editados na gestão Bolsonaro, 10.588/2020 e 11.030/2021. Estes regulamentavam pontos estratégicos trazidos pela Lei 14.026/2020, que revisou a Lei 11.445/07, como as novas regionalizações do saneamento e a metodologia para a comprovação da capacidade econômica financeira dos contratos de prestação vigentes. As novas publicações alteram prazos e metodologias.

Ambos os decretos da gestão Bolsonaro foram publicados com atraso, contendo prazos apertados e quase não foram submetidos ao debate público (envolvendo os diferentes atores do segmento do saneamento). O conteúdo dos decretos ainda envolve matérias de  desentendimentos e quebra de acordos que remontam à aprovação da Lei 14.026/2020 e dos vetos presidenciais. 

Após grande expectativa e pressão, incluindo bastante repercussão na grande mídia, os novos decretos foram publicados em 5 de abril de 2023. Estes foram considerados exagerados por parte do setor privado e por congressistas que apoiaram a revisão do Marco Legal do Saneamento. 

Em um contexto de disputa entre prestadores públicos e privados pelo mercado de serviços de água e esgoto nas grandes cidades, com a mudança do governo federal em 2023, a revisão desses decretos não foi algo trivial. Desde a transição de governos, se abriu uma conversa sobre a necessidade de revisão dos decretos de saneamento e do próprio Marco Legal (Lei 14.026/2020. Parte da justificativa era garantir a possibilidade de financiamento com recursos da União para empresas, municípios e estados que não cumpriram os prazos e requisitos previstos anteriormente, o que envolvia um total de 1.113 municípios

Enquanto os dois decretos anteriores foram publicados em momentos diferentes do governo Bolsonaro, os dois decretos atuais chegaram juntos, ainda que continuem específicos a cada tema. A nova redação organizou conceitos, ampliou prazos e revisou metodologias com a justificativa de tentar garantir a possibilidade de financiamento com recursos da União para empresas, municípios e estados que não cumpriram os prazos e requisitos anteriores. 

Publicados em 5 de abril de 2023, novos decretos foram considerados exagerados por parte do setor privado e por congressistas que apoiaram a revisão do Marco Legal do Saneamento 

Dias depois, foi proposto um decreto parlamentar excluindo grande parte do conteúdo dos decretos do governo federal. A tramitação do decreto parlamentar se deu ainda em uma conjuntura de disputas políticas entre Congresso e Governo Federal não relacionadas diretamente com o saneamento. A Câmara dos Deputados aprovou o decreto parlamentar, representando a primeira grande derrota do governo na casa. O Senado, por sua vez, não deu prioridade à pauta e, em uma nova fase de negociações, o governo federal revisou os textos das publicações de abril e editou dois novos decretos: 11.598/23 e 11.599/23, em 12 de julho de 2023.

A principal diferença entre os decretos de abril e julho é o grau de detalhamento de alguns pontos, em termos de conceito e regramentos, e o que foi considerado polêmico foi retirado. O papel de um decreto é ajudar a implementar uma lei, uniformizando entendimentos,  procedimentos, documentações etc, desse modo, ele não pode mudar ou contradizer o que traz a Lei. O que não é regulamentado por decreto federal, por sua vez, não quer dizer que está proibido, mas sim fica em aberto e a Lei pode ser interpretada de diferentes formas pelos demais entes, sujeitos a questionamentos no âmbito legal.

As disputas de interpretações da Lei saem do campo dos decretos e continuam nos Estados e em processos de judicialização. Como, por exemplo, já há no STF um questionamento sobre como a Paraíba e a companhia estadual de saneamento, a Cagepa, estão atuando nas microrregiões de saneamento básico.

Há ainda regulamentações federais por virem, mas sem nenhuma urgência aparente: O decreto 7.217 de 2010 que regulamentou de forma integral a lei 11.445/07 (e não artigos específicos como é o caso dos dois decretos em tela) ainda não foi revisto considerando as s alterações da Lei 14.026/2020. Mesmo o governo anterior não deu prioridade a essa revisão geral do decreto de 2010.

Os focos dos decretos

Comprovação de capacidade econômica

O decreto 11.598 trata da metodologia para comprovação da capacidade econômico-financeira dos prestadores de serviços públicos de abastecimento de água potável ou de esgotamento sanitário, considerados os contratos em vigor, com vistas a viabilizar o cumprimento das metas de universalização (regulamentando o art. 10-B da Lei 11.445/07). A definição por decreto da metodologia de comprovação está expressa na Lei 14.026/2020, com um prazo de 90 dias da data de publicação da Lei(15/07/2020). No entanto o decreto 10.710 só foi publicado em maio de 2021, com mais de sete meses de atraso, continha prazos apertados e foi pouco debatido com aqueles que fariam a comprovação, as companhias estaduais de saneamento básico. 

Prestação de serviços regionalizada

O decreto 11.599 aborda a prestação regionalizada (regulamentando o art. 13 da Lei 14.026/2020), trata da alocação de recursos públicos federais e dos financiamentos com recursos da União ou geridos ou operados por órgãos ou entidades da União (regulamentando o art. 50 da Lei 11.445/07). O primeiro decreto sobre essa temática foi publicado no governo Bolsonaro em dezembro de 2020 (n° 10.588 ) e revisto no mesmo governo, pelo decreto n° 11.030 de 01 de abril de 2022, visando entre outros a prorrogação de prazos para a conclusão das regionalizações nos estados.

O que há nos textos das publicações

O IAS preparou um raio-X dos dois decretos, com informações sobre as novas regras e prazos para desenhos de regionalização e metodologia de cálculo, entre outros detalhes.