Segundo estudo da ANA, calamidades desse porte devem se tornar cinco vezes mais frequentes. Cidades precisam se adaptar com urgência em aspectos como infraestrutura, saneamento e planejamento urbano.
07 May 2025

Choveu muito no dia 29 de abril de 2024 no Rio Grande do Sul. A água seguiria caindo com intensidade até 2 de maio, em vários municípios do estado. Ao final de quatro dias, seriam mais de 300 milímetros, o equivalente a dois meses de precipitação.
Era apenas o começo do maior desastre hidrológico da história do Rio Grande do Sul, de acordo com a ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico), no estudo “As enchentes no Rio Grande do Sul: lições, desafios e caminhos para um futuro resiliente”, publicado em 30 de abril.
Em 5 de maio, o rio Guaíba atingiu o maior nível de sua história (5,37 metros) no Cais Mauá, área central de Porto Alegre. O sistema de proteção de cheias da cidade apresentou problemas em vários pontos, incluindo o colapso de uma comporta e falhas nas estações de bombeamento. O centro foi tomado pelas águas e o aeroporto internacional Salgado Filho acabou inundado e teve que ser fechado. As águas só começaram a baixar dois meses depois.
De acordo com a Corsan (Companhia Riograndense de Saneamento), pelo menos 523 mil domicílios ficaram sem água potável em 39 cidades já nos primeiros dias. No auge da crise, em 4 de maio, o número chegaria a 1 milhão de residências em 64 municípios. Os problemas sanitários se deram em várias frentes. A quantidade de resíduos gerada pelas enchentes chegou a 46,7 milhões de toneladas, de acordo com estudo de pesquisadores da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e Instituto de Pesquisas Hidráulicas. Os primeiros dois meses da tragédia também registraram 546 casos de leptospirose, com 25 mortes confirmadas, segundo a Secretaria de Saúde do RS.
Cerca de 90% do estado acabou impactado pela catástrofe, que atingiu 478 dos 497 municípios gaúchos. Segundo a Agência Brasil, em informações atualizadas em 1º de maio de 2025, cerca de 2,4 milhões de habitantes do estado foram afetados, com quase 200 mil pessoas desalojadas ou desabrigadas. Um total de 184 pessoas morreram, com 25 desaparecidas até hoje.
Ajuda e resultados
A mobilização para socorrer o Rio Grande do Sul foi rápida e de grande alcance: doações vieram de todo o Brasil e milhares de voluntários trabalharam incansavelmente na linha de frente.
Da parte do poder público, o governo federal suspendeu a cobrança da dívida do estado com a União e a instituição de um auxílio emergencial de R$ 5,4 mil, pago a 420 mil famílias. No nível estadual e municipal, programas de aluguel solidário e força-tarefa de profissionais da saúde proporcionaram algum alívio.

Um ano depois, em balanço publicado em maio de 2025, o governo federal afirmou ter investido R$ 111,6 bilhões no Rio Grande do Sul. Já a administração estadual declarou ter colocado R$ 8,3 bilhões em diversas frentes de auxílio. Ainda assim, a infraestrutura em diversas localidades e a qualidade de vida de fatias da população ainda estão longe da recuperação.
Do total enviado por Brasília, cerca de R$ 6,5 bilhões dizem respeito ao envio em dezembro de 2024 para o Fierce (Fundo de Apoio à Infraestrutura para Recuperação e Adaptação a Eventos Climáticos Extremos), destinado a financiar obras estruturantes de mitigação e adaptação às mudanças climáticas, incluindo diques, canais e sistemas de proteção e drenagem.
No entanto, um impasse tem atrasado o início da utilização do dinheiro. A administração estadual, que pediu ao governo federal para encabeçar as obras, afirma que precisa atualizar os termos de referência antes de iniciar as contratações.
Por sua vez, municípios reclamam da demora por parte do governo estadual. “Nós escrevemos vários projetos de proteção de cheias. Mas isso está lá, nenhum foi autorizado ainda. A gente quer que seja decidido rapidamente”, disse o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, ao site Poder360.
Segundo apuração do jornal gaúcho Correio do Povo, de nove das principais obras de contenção de cheias do estado, apenas três já foram iniciadas. Das restantes, há algumas em fase de revisão dos anteprojetos e outras ainda estão com estudos e relatórios de impacto ambiental em análise.
Outra questão que ainda não foi completamente resolvida é a de moradia. De acordo com o governo federal, existe ainda uma demanda de 22 mil imóveis. Por todo o estado, pessoas ainda recebem aluguel social e aguardam um teto definitivo por meio de programas como Minha Casa, Minha Vida.
Organizações internacionais como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e a Anistia Internacional criticaram os esforços das autoridades brasileiras como estando aquém do necessário. Para a Anistia, em seu relatório anual, não foram realizadas “ações suficientes para minimizar os impactos da crise climática”.
No início de maio, um relator especial da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) veio ao Brasil para apresentar um estudo do órgão sobre a calamidade gaúcha. Entre as sugestões que a comissão pretende trazer para autoridades brasileiras estão a inclusão da questão climática nos planejamentos municipais; o aprimoramento do monitoramento das chuvas; melhorias em sistemas de drenagem, e também a restauração de ecossistemas degradados. Também pedirá mais proteção de Direitos Humanos para populações vulneráveis como pescadores e ribeirinhos a catadores de materiais recicláveis.

Aprendizados da tragédia
De acordo com o estudo da ANA (“As enchentes no Rio Grande do Sul: lições, desafios e caminhos para um futuro resiliente”), tragédias como a do Rio Grande do Sul devem se tornar cinco vezes mais frequentes.
Segundo modelos utilizados pelos pesquisadores, as vazões dos rios gaúchos tendem a ser 20% maiores que as máximas atuais. Diante dessa nova realidade, as cidades precisam se adaptar com urgência em aspectos como infraestrutura, saneamento e planejamento urbano.
“As técnicas de análise normalmente adotadas na engenharia para esses fins não são capazes de lidar de maneira adequada com o grau de incerteza sobre os extremos hidrológicos no futuro”, afirmou o documento. “A engenharia brasileira deve iniciar um processo de desenvolvimento de técnicas baseadas em gestão de risco adaptativa, seguindo o exemplo de outros países que já iniciaram esse processo de forma mais sistemática, mudando o paradigma de operação e dimensionamento das infraestruturas”.
O relatório da ANA também ressalta o papel das áreas verdes no amortecimento e contenção de enchentes. “Áreas ribeirinhas podem ser transformadas em parques de inundação, reduzindo o impacto das cheias e criando espaços seguros para a população”, propõe a publicação da agência.
Outro aspecto que precisa se atualizar para a nova realidade é o sistema de alertas e orientações para a população. “O RS tem, do ponto de vista meteorológico, um cenário perfeito para quem gosta de estudos de tempestades de diferentes tipos: tem eventos que ocorrem mais ao noroeste, outros, na região do extremo sul e no litoral. Todos esses fenômenos podem ocorrer simultaneamente em diferentes pontos do estado. Por isso, é preciso ter uma equipe que consiga dar conta de todos os eventos que ocorrem, por vezes, ao mesmo tempo”, disse Daniel Caetano, doutor em Meteorologia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), ao site do IHU Unisinos.
Além disso, o especialista frisa que é preciso maior conscientização das pessoas em relação ao que fazer diante de um aviso meteorológico. “Se hoje, alguém receber um alerta de que vai chegar 200 milímetros nas próximas 24 horas, o que a pessoa vai fazer? Não sabemos o que fazer porque não temos ideia de qual é a capacidade de escoamento dessa quantidade de chuva e quais são os pontos mais seguros e vulneráveis das cidades. Essa situação não faz parte do nosso cotidiano. É diferente da situação dos EUA”.
Diante dessa nova realidade, as cidades precisam se adaptar com urgência. Há um espaço para a reconstrução e recuperação com novos repertórios, que olhem para a natureza como modelo e tenham maior integração entre planejamento urbano, novas tecnologias e infraestruturas mais resilientes, priorizando as populações em situação de maior vulnerabilidade social. Lançada em janeiro, a publicação do IAS “Adaptação e Saneamento – Por um setor resiliente às mudanças climáticas”, lançada em janeiro, se debruça sobre os temas da adaptação e da resiliência, com exemplos práticos bem-sucedidos em outros países.
Read also
Editorial IAS 2025 – Em ano de COP no Brasil, como fica o saneamento?
Saneamento resiliente às mudanças climáticas é foco de publicação do IAS
Compartilhar
Tópicos
Newsletter do IAS
Assine para receber notícias sobre água e saneamento e comunicados do IAS
Notícias Relacionadas
iniciativas
Conheça as iniciativas do IAS que buscam
inspirar mudanças no setor de saneamento

Municípios e Saneamento (Municipalities and Sanitation)
Acesse os dados mais recentes sobre o saneamento nos municípios brasileiros.

World Toilet Day
Anualmente promovemos ações para conscientizar sobre a importância do acesso a banheiros e higiene adequados.

Fórum Água e Saneamento
É um espaço permanente de diálogo e troca de ideias entre diversos atores da sociedade que de alguma forma se relacionam com o setor de saneamento e seus temas transversais.