Saúde menstrual e saneamento

imagem mostra a programação de mesa que debate sobre pobreza menstrual e saneamento no Dia Mundial do Banheiro em 2021

Encontro online reúne mulheres que lutam pelos direitos à saúde e à dignidade de pessoas que menstruam

Metade da população mundial menstrua ou menstruou. Ainda assim, no Brasil e em outros países, o assunto é tratado como um tabu e invisibilizado pelo poder público, que não prioriza políticas públicas para garantir a saúde menstrual das mulheres e outras pessoas que menstruam, como distribuição gratuita de absorventes e acesso a banheiros adequados.

Saúde Menstrual e Saneamento foi tema de uma mesa na programação do Dia Mundial do Banheiro 2021. O encontro aconteceu na tarde de 22 de novembro, com a presença de Aline Matulja, uma das fundadoras da Sana; Edicléia Pereira Dias, criadora do Projeto Banco de Absorventes; e Victória Dezembro, fundadora do Projeto Luna. A mediação foi realizada por Mariana Clauzet, responsável pelo setor de Redes e Parcerias do IAS. 

Miolo de pão, meias velhas, sacolas plásticas, papelão, trapos de pano. Esses são alguns dos itens nada adequados utilizados por quem não tem condições de adquirir mensalmente absorventes para os dias de fluxo menstrual. As consequências da falta de acesso são muitas. Vão desde o desenvolvimento de doenças graves à perpetuação do ciclo de pobreza.

“A pobreza menstrual tem um impacto devastador na vida produtiva, na autoestima e no processo de inserção das mulheres e outras pessoas que menstruam no mercado de trabalho e na sociedade como um todo”, explicou Victória Dezembro, do Projeto Luna.

O Projeto Luna nasceu durante a pandemia com os objetivos de combater a pobreza menstrual através da educação, desestigmatizar o assunto e tornar acessíveis artigos de saúde menstrual. “Nós montamos kits de saúde menstrual com absorventes diurno, noturno, calcinha, escova de dentes, pasta de dentes, sabonetes, papel higiênico e algumas outras coisas e entregamos esses kits nas ruas de São Paulo, em ocupações, em casa de acolhimento, em breve em penitenciárias e futuramente em orfanatos e comunidades”, detalhou

O que é pobreza menstrual?

Segundo Victória explicou, a pobreza menstrual é a falta de acesso à educação sobre menstruação, saneamento básico, banheiros e artigos menstruais. No Brasil, esses são considerados artigos de luxo, tributados com uma carga de 27,5%, equivalente a itens supérfluos. “Não faz sentido, visto que esse é um processo fisiológico inevitável e não uma escolha. O que muitas pessoas não sabem é que o ato de ter que improvisar um artigo para absorver o fluxo menstrual é muito mais grave do que simplesmente o desconforto de não ter o absorvente”, alertou.

No Brasil, as mulheres que estão entre os 5% mais pobres precisam trabalhar até quatro anos para custear os absorventes que vão usar ao longo da vida. “Essa é uma questão urgente e precisamos abordar enquanto sociedade, falar por que isso está acontecendo e demandar que nosso poder público distribua esses ativos gratuitamente, zere os tributos dos absorventes e providencie para as nossas meninas e meninos educação sobre menstruação na escola”, apontou Victória.

Impactos irreversíveis

O uso de artigos indevidos pode causar infecção urinária. Com o tempo, aumenta o risco de desenvolver câncer cervical e pode levar à infertilidade. “Vemos isso com muita clareza na Índia, um dos países com o maior índice de pobreza menstrual no mundo, onde apenas 12% das mulheres têm acesso a absorventes. O país tem o maior índice de câncer cervical do mundo”, exemplificou Victória. “Eu acho curioso que o poder público disponibilize camisinha gratuitamente, mas não disponibilize absorvente”.

De acordo com ela, a falta de informação é uma das consequências do tabu em torno da menstruação. “As pessoas falam: ‘mas a camisinha previne doenças’. E o absorvente? E as infecções urinárias que acabam se tornando um câncer? As pessoas não sabem sobre isso, porque, infelizmente, a sociedade determinou que a menstruação é um assunto a empurrar para baixo do tapete, está dentro de uma caixa no escuro do porão e ninguém fala sobre isso”.

Déficit educacional

A pobreza menstrual também resulta em evasão escolar. A falta de absorventes e a ausência de banheiros nas escolas fazem com que meninas faltem durante o período da menstruação. São, em média, cinco dias de faltas mensais. O resultado costuma ser déficit educacional e consequente abandono dos estudos. Além de ter o direito à educação negado, elas terão dificuldades de conseguir boas colocações no mercado de trabalho, impactando sua vida produtiva e perpetuando o ciclo de pobreza.

Em Camaçari, cidade a 50 quilômetros de Salvador, a gestora escolar Edicléia Pereira Dias decidiu buscar enfrentar o desafio de diminuir os índices de evasão na Escola Municipal Cosme de Farias. “Em 2010 eu assumi a gestão escolar e recebi o dado de que era a escola com maior evasão escolar em Camaçari. Traçamos o perfil de quem eram esses alunos que evadiram. Percebemos que a maioria era menina entre 10 a 17 anos. Caminhamos por várias hipóteses de causas, até que, em 2012, fizemos uma planilha com essas faltas e traçamos gráficos de linha para perceber em que momento essa ausência se dava e quando essa aluna deixava de frequentar definitivamente”, contou.

Um insight da secretária escolar pôs fim ao mistério. Ela observou que as faltas se repetiam mês a mês, mais ou menos no mesmo período e deduziu que as meninas não iam à escola no período menstrual. “Ficou definido que faríamos a entrega do absorvente. Mas como fazer isso sem afastar a aluna de vez? Dizer para o outro que você tem conhecimento de que existe essa fragilidade na vida dele é expor uma ferida muito grande. Como abordar de forma sutil sem causar medo nessa adolescente? Afinal, estamos falando de meninas em período de descobertas, de formação da personalidade”. 

A equipe decidiu arrecadar, entre os próprios funcionários, itens para montar um kit de presente. Havia escova de dente, creme dental, de cabelo, maquiagens, perfume, desodorante, hidratante e, claro, absorventes. “Convidamos as alunas para a sala da direção e falávamos sobre as ausências: ‘olha, senti sua falta, você não estava vindo para a escola, aconteceu alguma coisa?’ A conversa versava sobre tudo, menos sobre menstruação. Eu dizia: ‘pensei tanto em você esses dias que preparei um presente. Você aceita?’ Ela abria e era notória a expressão de alívio. Então, eu dizia: ‘tenho outro presente e gostaria de entregar para uma colega sua. Você indica alguém?’ Tínhamos um grupo focal com 20 e conseguimos ampliar para 50 alunas”. Esse foi o início do Projeto Banco de Absorventes, que existe até hoje e ganhou amplitude após uma postagem nas redes sociais, em 2018.

A escola recebia um projeto social de dança do ventre com a participação da comunidade e de alunas da instituição. Em uma das aulas, uma estudante que não estava nas estatísticas de falta e evasão disse para a professora de dança que não poderia participar da aula. Afirmou que estava menstruada e tinha medo de se sujar, pois, no lugar do absorvente, usava um pedaço de papelão. “Uma aluna de dez anos, sem aparentar condições de vulnerabilidade. Eu me dei conta de quantas coisas insalubres as minhas alunas estavam utilizando para não faltar às aulas”, lamentou Edicléia.

A professora de dança pediu permissão para postar em suas redes sociais a história do Banco de Absorventes. “Foi aí que o Banco se tornou conhecido, houve matérias e reportagens. A população de Camaçari abraçou a ideia, ampliou a capacidade de atendimento da iniciativa, de 2019 até hoje eu consigo entregar na Escola Cosme de Farias um pacote de 30 absorventes para cada estudante, um total de 320 alunas, todos os meses”. Mesmo durante a pandemia, as alunas compareciam à escola para entregar as atividades e recebiam o pacote de absorventes. 

A história da professora e do Banco de Absorventes deu origem a uma lei de combate à pobreza menstrual no município de Eunápolis, a mais de 500 quilômetros da capital baiana. A lei chama-se Professora Edicléia Pereira Dias. 

Segurança, saúde e privacidade para mulheres

Segundo Aline Matulja, engenheira sanitarista e uma das fundadoras da Sana, 321 mil meninas brasileiras não têm acesso a banheiro nas escolas que frequentam e mais de 1,5 milhão de mulheres não têm banheiro em casa. Além de faltar às aulas quando menstrua, essas pessoas têm seus corpos expostos pela falta de banheiro. “Em média, uma mulher se expõe seis vezes ao dia para realizar suas necessidades num cenário em que 70% dos casos de abuso acontecem no ambiente doméstico e nas proximidades. Em um ano, isso totaliza 200 horas de exposição do corpo dessa mulher.”

A Sana nasceu após Aline realizar uma consultoria, como engenheira sanitarista, para a construção de banheiros em comunidades.  “Ali o tabu era profundo e as pessoas que não tinham acesso ao banheiro estavam muito pouco disponíveis a falar sobre isso, porque era expor para mim, uma pessoa de fora, privilegiada, a mais profunda ferida, a mais profunda cicatriz desse abismo de desigualdade social que a gente tem no Brasil”.

Sana desenvolveu um desenho próprio de banheiro seco e compostável. “Fazer banheiro convencional nos dias de hoje custa, pelo menos, R$ 5 mil. As pessoas que não têm banheiro em casa são as que vivem abaixo da linha da pobreza e precisam juntar os rendimentos de um ano, sem gastar nada, para ter um banheiro. Elas têm os seus direitos humanos ao saneamento e à privacidade violados”, explicou.

As mulheres são as mais beneficiadas pelo acesso ao banheiro. “Inicialmente, a experiência não era focada em mulheres, mas quando retornamos para conversar com a comunidade, identificamos que as pessoas que, mesmo com banheiro, preferiam não utilizar, eram homens. Descobrimos que as vidas que eram transformadas de verdade eram as das mulheres. A percepção da necessidade de privacidade tinha muito a ver com elas”, ressaltou Aline. 

Rompendo o estigma

Para vencer o tabu em torno da menstruação, o primeiro passo é falar sobre o assunto de forma aberta. “Se você é mulher, no seu próximo ciclo menstrual use a palavra menstruação. Não use: estou de chico, estou naqueles dias, entre outras expressões. Só de usar a palavra menstruação a gente já mostra que não se trata de um bicho de sete cabeças. Quando a gente não chama pelo nome, dá a entender que é algo proibido, que é ruim, sujo”, sugeriu Victória.

O estigma é tão profundo que uma pesquisa conduzida com mulheres no sul da Ásia mostrou que 20% das entrevistadas que tinham acesso a banheiros evitavam usá-los durante a menstruação por medo de manchar o vaso. “A vergonha de falar sobre menstruação, de alguém saber que uma menina, uma mulher está menstruada é tão grande que ela deixa de ir ao banheiro. Como ela maneja a menstruação dela? Essa menina também não vai para a escola, porque ela vai ficar com medo de usar o vaso sanitário da escola e alguém ver que ela está menstruada, ou do trabalho”, refletiu a fundadora do Projeto Luna.

Edicléia contou que a repercussão do Projeto Banco de Absorventes abriu espaço para dialogar sobre pobreza menstrual com as alunas da Cosme de Farias. Ela destacou, ainda, que a pobreza menstrual é um descortinador de outras violações de direitos. “Atrás de uma menina que não tem condições de comprar o absorvente tem uma família inteira em situação de privações. Eu entreguei para uma menina um kit desses de presentes que tinha uma escova de dentes, ela abraçou a escova e disse que finalmente teria uma só para ela. Peguei oito escovas, uma para cada integrante da família, e entreguei a ela. Cada um da casa ia ter sua escova”, exemplificou.

A gestora e professora chamou a atenção também para a importância de o Brasil gerar suas próprias estatísticas sobre saúde menstrual, em vez de basear-se nas de outros países, e destacou que não distribui coletores e absorventes reutilizáveis de tecido por não ter como garantir a higienização adequada desses itens. “Em vez de discutir essa questão da pobreza menstrual pelo crivo do romantismo ecológico, temos que ser mais precisos. É o absorvente higiênico descartável sim, porque a condição sanitária para utilizar um coletor tem que ser muito bem estruturada e eu tenho certeza que o meu braço, enquanto gestão escolar, não alcança essa questão”.

Mariana Clauzet, do IAS, concordou. “Não adianta falarmos de descarte de absorvente no meio ambiente com tudo isso que vocês colocaram aqui. Tem que ser um passo de cada vez. Seu posicionamento incisivo, Edicléia, tem o apoio de grande parte das pessoas que trabalham com direitos humanos e conservação do meio ambiente. Uma coisa não acontece sem a outra, mas tudo tem o seu tempo”.